As periferias do Brasil estão repletas de talentos. Os que conseguem ultrapassar a barreira invisível, entre a favela e o restante da sociedade, normalmente são através da música e do esporte. E são esses que se tornam exemplo para outros jovens.
Há algum tempo o Portal Rap Nacional acompanha o trabalho de um jovem da periferia, que ultrapassou as barreiras do preconceito e conseguiu mostrar seu trabalho até do outro lado do mundo. E, não foi através do esporte e nem da música. Mesmo sendo cantor, o que fez ele se destacar foi a literatura.
Hoje ele é um exemplo! As mães o apontam na rua, desejando que os filhos sigam os passos desse guerreiro das letras. Já que gostar de ler e escrever é fato raro entre a juventude.
Ele nasceu Reginaldo Ferreira da Silva e adotou o nome artístico de Ferréz. Uma homenagem a dois heróis brasileiros, Virgulino Ferreira (Ferre) e Zumbi (Z). Dois heróis que são ignorados na história do Brasil. Dois heróis que assim como ele lutaram pelas minorias.
Ferréz, já lançou oito livros. Teve obras publicadas na Itália, Portugal, Espanha, EUA, Alemanha e em breve na França e no México. Fez roteiro da série de televisão Cidade dos Homens e da série 9MM, da FOX. É o fundador da 1daSul e do Selo Povo. Apresenta o programa Interferência, na TV Cultura. É rapper do grupo Tr3f. Teve sua história retratada no documentário Literatura e Resistência...
O Portal Rap Nacional bateu um papo com Ferréz, esse ser inquieto que não pára de buscar e de realizar coisas novas.
RAP NACIONAL: A sua biografia é vasta. Você já atuou em várias áreas e desenvolve muitos projetos. Todas as atividades que você realiza têm um objetivo em comum?
FERRÉZ: Sim, o mesmo objetivo que é dar senso crítico, cultivar dúvida.
R.N.: O que o Ferréz busca com seu trabalho?
FERRÉZ: Discutir um país melhor, entreter com compromisso, e deixar bem claro, que a periferia não é o que eles sempre falaram.
R.N.: Você começou a escrever ainda na infância. O que fez despertar em você o gosto pela literatura?
FERRÉZ: Não sei mesmo, ainda com sete anos eu já rabiscava umas poesias, fazia brincadeiras que tinha banca de jornal, que era vendedor de livro, sempre foi assim, comecei a juntar gibis com cinco anos e nem sabia ler, depois fui lendo um a um e relendo, o estranho é que nunca ninguém lia nada na favela que eu morava, mas eu não desanimava, acabava escrevendo cartas para amigos e falando dos livros, amigos que só eu via.
RAP NACIONAL: Que a leitura é importante, isso é fato indiscutível. Mas, gostaria que você falasse sobre a importância dela para quem escreve, ou quer escrever, letras de rap.
FERRÉZ: Acho que nesse momento, essa pergunta é tudo, falta tanto conteúdo, mas não só isso, falta administrar à carreira, ser cordial com quem está produzindo seu evento, preenchendo o trabalho que o artista não faz. Como alguém quer passar algo sem ter? Como falar de revolução sem saber nem seu direito? A leitura indica caminhos, dúvidas, soluções, gera fatores positivos na caminhada de cada um, e não só para o rapper para qualquer um que pense em ser artista, se não quer se informar, é melhor desistir.
R.N.: O que é o selo Povo? E qual o principal objetivo desse projeto?
FERRÉZ: O Selo Povo surgiu da idéia de continuar a literatura Marginal, a revista que lançamos deu espaço para mais de 40 autores novos, mas ai a cena mudou, o que era para ser barato ficou alternativo mas também caro, e isso não é revolucionar, por isso criei a idéia de livros a R$ 5,00 e para ser esse preço tem que ter uma distribuição independente. O Selo Povo vem cobrir esse buraco no nosso movimento literário, livros de qualidade e com preços melhores, e também é minha chance de lançar escritores, temos a Cernov De Rondônia, a Cidinha de Minas Gerais, porque esses estados também são do Brasil, também tem periferia, pra quem pensa só em São Paulo e Rio.
R.N.: Conseguir vender livros há preços acessíveis ao povo da periferia é a realização de um sonho para um escritor periférico?
FERRÉZ: Imagina fazer uma palestra na fundação casa, como fiz várias, e convencer dos 50 jovens, uns 10 a ler, e depois falar que seu livro custa 35,00? Imagina fazer um evento de rap para 2.000 pessoas e não ter um livro pois a editora não te entregou. Me livrei dessas algemas, continuo numa grande editora, pois tenho contratos a cumprir e isso não vai atrapalhar o Selo Povo, mas estou plantando uma idéia maior ainda, o nosso selo com nosso jeito de ver o mundo.
R.N.: E como o rap surgiu na sua vida?
FERRÉZ: Não vou mentir, dizer que tenho 20 anos de rap, todo mundo que conheço fala que começou na Praça São Bento, porra! Quantos milhares de manos tinha lá? Comecei a curtir em 97, antes de lançar meu livro de poesias, achei as músicas foda, mas as letras eram fantásticas, me apaixonei pelo som de Gog, Câmbio Negro, Racionais, Consciência Humana, CXA, Sistema Negro e fiquei apaixonado até hoje, nunca passou, quando ouço uma letra como a do Facção, do Realidade, do Dexter, dá orgulho de ser da cultura.
R.N.: Fale um pouco da sua parceria com o Mauricio, do Detentos do Rap. Quais os próximos projetos do Tr3f?
FERRÉZ: O Maurício é um cara presente na minha vida, quando perdi um grande parceiro, ele estava lá, quando ele foi vítima do destino, eu estava lá, e o Tr3f surgiu do abandono, dos caras que colavam com a gente e viraram às costas na dificuldade, eu estava produzindo meu segundo disco solo, ele sozinho com o disco dele, então foi natural, somos dois e mais o abandono, por isso Tr3f.
R.N.: Como você avalia o rap nacional hoje?
FERRÉZ: Falta meta, se é gangster ,então mete bronca, faz quadrilha, seja o tema, agora se é de curtição, então posa de champagne na mão, ou uma coisa ou outra, no mundo inteiro o rap tem proposta, você sabe quem é quem, aqui fica essa coisa, de um pouco isso um pouco aquilo, num dá pra ser gangstar-gospel-dance-ladoc, tem que decidir e caminhar com seu ponto de vista.
R.N.: A 1daSul é uma marca de roupas ou um projeto social?
FERRÉZ: Marca de roupa que intervém no bairro como algo social, no final acaba contribuindo, mas é uma empresa, tem escritório, lojas, estrutura, meta, está se emancipando agora e vai mais longe pois não temos limites pela periferia, faz 10 anos que temos a marca, ela é de todo mundo agora, e dá orgulho ver que os meninos entenderam a proposta, feito por nós, para nós.
R.N.: Como surgiu a idéia do documentário Literatura e Resistência?
FERRÉZ: Comecei a juntar uns arquivos pessoas para por no youtube e no final era muita coisa, eu queria mostrar que agente fez uma diferença, não queria que me associassem com o crime, como o processo que levei por um texto acabou fazendo, eu queria que as pessoas soubessem o que plantamos, e o filme consegue isso, mostra um pouco do que construímos.
R.N.: O que o público vai poder conferir nesse documentário?
FERRÉZ: A criação da 1dasul, onde é feita a marca, quais as pessoas que trabalham, também a distribuição da Literatura marginal, meus corres desde a favela do Arábia, do parque Santo Antônio, do Comercial até a Europa, até a Alemanha, e ver que a informação é a cura. Também um pouco de cada parceiro que deu seu ponto de vista, o Lourenço Mutarelli, o Eduardo do Facção, Lobão, Marcelino Freire, tem um monte de gente legal.
R.N.: Há poucos dias você sofreu uma abordagem policial, como você relatou no seu blog. Na ocasião você usou a frase "Você sabe quem eu sou". O que você pretendia com essa pergunta?
FERRÉZ: Quando você toma um murro, como tomei, perde a linha, eu ia falar que era um escritor, assim como os caras que são do crime aqui falam – é coisa de bandido. Quando uma coisa é da hora, eu tenho orgulho de ser escritor, e ia falar isso, sou um escritor. Mas depois ponderei e pensei que eles podiam lembrar dos textos que fiz na época dos assassinatos de policiais, e preferi ficar na minha.
R.N.: A literatura marginal virou objeto de estudo de antropólogos e estudantes universitários. Você imaginava que um dia suas obras poderiam ser objeto de estudo?
FERRÉZ: Não. Nunca imaginei, eu queria ser lido por 10 amigos da minha favela, o que vem a mais é extra, ta bom demais, acho legal ter isso tudo, mas o melhor livro ainda estou fazendo, sempre vai se o próximo.
R.N.: Você é um dos poucos autores que consegue atingir o público de todas as classes sociais. Você acredita que a percepção da leitura é muito diferente de uma classe para outra.
FERRÉZ: Acho que sim, muda muito, pra uma classe com mais dinheiro é diferente o entendimento, eles vêem de outra forma, tentam se encaixar ali, pra nossa é outra coisa.
R.N.: Você já foi processado por algum texto/livro que você publicou?
FERRÉZ: Algumas vezes, pelo Ministério Público por um texto da folha, por uma advogado que moveu uma ação contra um texto que falava do sistema penal, e mais algumas representações, mas é bom falar que desde Gorki, que já foi preso várias vezes, quem não incomoda não tá falando nada que defenda o povo, pois o sistema é uma máquina e criticar alguma engrenagem incomoda a fábrica principal.
R.N.: O que mudou na sua escrita durante esses anos de caminhada.
FERRÉZ: Mudou, revisão, estudo da linguagem, no meu novo romance, que sai no final do ano, eu mostro isso, na fala dos personagens. Do livro Capão Pecado pro Manual prático do ódio já da pra ver essa mudança, agora no de contos tem algo também, e no novo romance isso fica claro, criar estilos é nossa função, e trabalhar na linguagem é trabalho de artesão, artesão das palavras.
R.N.: Lampião e Zumbi dos Palmares porque você escolheu esses heróis na hora de assinar o seu nome.
FERRÉZ: Sempre gostei do povo nordestino, sou filho de baiano, sou fá de comida do norte, e Lampião sempre me fascinou, assim como Zumbi dos Palmares, são duas referências, o braço e a mente.
Texto: Elaine Mafra
Entrevista: Elaine Mafra e Cristiane Oliveira
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