Chullage levou oito anos a lançar o seu novo CD. Não porque não
tivesse músicas feita para vários, mas porque precisava de dar de comer
aos filhos. Nos bairros a vida não está fácil e o rap canta o amor e a
raiva daqueles que lutam e sobrevivem.
Por Nuno Ramos de Almeida, para o site
iOnLine
Se o convidassem para os “Morangos com Açúcar”, para fazer um rap, acha que se enquadrava?
Não. A cena é em que contexto a tua música vai aparecer. Os
“Morangos com Açúcar” estão sempre a sobrevoar. Fazem um episódio da
droga e estão a sobrevoar. Houve um episódio sobre os artistas que era
muito romanceado. Se agarrassem numa música minha e fizessem uma coisa
qualquer ia ficar fora de contexto.
Não acredito que colocassem o meu
tema “Barrigas Vazias”. Normalmente, as músicas que colocam são para
ilustrar aquela espécie de psicologia de microondas que vendem aos
miúdos. Decidem falar da droga e é sempre numa perspectiva como se
estivessem num gabinete longe da realidade a falar para a classe
média-alta sobre os problemas. E nesse sentido a minha música só poderia
estar fora de contexto.
Não acha que apareceu fora de contexto numa campanha sobre o
desperdício alimentar em que a canção dizia “o que eu não aproveito ao
almoço e ao jantar/a ti deve dar jeito, temos que nos encontrar”, uma
espécie de dar os restos aos pobrezinhos...
Não participei com esse intuito. Fui contactado por uma agência que
me pediu para participar numa campanha contra o desperdício alimentar e
eu concordo que não deve haver desperdício alimentar. Até por uma
questão pessoal, estou desempregado há seis meses e se alguém me dá uns
iogurtes, se eu tiver fome vou comer. A música transformou-se em algo,
porque realmente a letra passa o contrário do que quer passar. Acredito
que não foi escrita com esse propósito, de serem “os restinhos da minha
mesa para ti”. Se fosse assim, não participaria.
Mas é verdade que, quem
não conhece a intenção dos autores, ao ouvir a letra pode ter a
perspectiva de uma cena paternalista, até ofensiva para a pobreza das
pessoas. Agora acho que há imenso desperdício. A pergunta que faço é: na
Inglaterra, quando os supermercados deitam a comida fora, põem lixívia e
amoníaco para impedir que as pessoas possam comer, gente que
efectivamente tem fome, aquela esquerda histérica que saltou para cima
da campanha está disposta a pôr amoníaco no problema das pessoas e
continuar a mandar soluções para amanhã para os problemas de hoje?
Não há sempre uma tensão entre o assistencialismo e resolver
o problema das pessoas? Conseguimos sempre justificar o “fazer
caridade” hoje, mas isso resolve o problema?
Sou contra o assistencialismo. Não é a dar sopinha aos pobres que se
vai resolver o problema da pobreza. As campanhas contra o desperdício
também não o vão fazer. Isto é uma merda, nem sequer chega a ser
paliativo. Isso mantém o problema. Acho que a letra está mal feita à
partida. Mas muita da gente que fala come bem para caraças. Naquela
altura, em que aquelas pessoas falaram disso, houve dias em que não
comi. Estou desempregado há seis meses e nenhuma dessas pessoas tem dado
resposta ao meu desemprego e ao de milhões de pessoas. Algumas
manifestações parecem um carnaval que não resolve nada. Sou um tipo de
esquerda, não defendo o assistencialismo, mas é preciso inventar novas
lutas e formas de resolver os problemas.
A primeira música do seu álbum faz uma certa crítica a um
rap que ficou com a estética e lhe tirou o sentido. Uma espécie de
contraponto entre o rap de rua e o comercial...
Não é o comercial. Sempre que fazes um CD estás a fazer algo de
comercial. É um rap higienizado e branqueado... E branqueado não se
refere à cor da pele, a expressão é usada para falar do esquecimento dos
seus valores e da sua história. Tens vários rappers brancos, asiáticos,
da América Latina, a fazer música radical que respeita os valores do
rap. Falo de uma música que é feita para se adaptar aos consumos de uma
classe média alta branca, que é branca porque estamos em Portugal e quem
tem mais poder de consumo são esses brancos. Se estivéssemos em Angola
ou Cabo Verde seriam negros, então vão fazer a música à medida desse
mercado, devidamente higienizada.
Uma das reivindicações do seu disco é um rap que continua a
falar da “cor da epiderme”. Não acha que em Portugal vivemos mais um
problema de desigualdades que de afirmação?
Tudo é um problema de desigualdade. Mas essa mesma desigualdade tem
especificidades. Não percebo por que razão toda a gente aceita as lutas
de género como sendo boas, mas quando se chega à questão da raça isso já
não é aceitável. Dizem: “Lá estão vocês com a mania da perseguição.” Só
quero fazer uma pergunta: a raça é um motivo de exclusão ou não? Há um
bolo grande que se chama igualdade, mas tem de haver várias frentes na
luta pela igualdade e essas frentes são de género, pois é, de classe,
pois é, mas também de raça. E quando nós estivermos a fazer essa luta da
raça estamos a fazer uma coisa importante.
Mas os músicos não são bons e maus independentemente da cor da pele?
Essa discussão da importância do contributo cultural é natural que
outros não a sintam. Não ouviram durante gerações dizerem-lhes na escola
e nos livros que a sua história era inferior. Que era uma história de
escravatura, de migrações, em que estás sempre na porta dos fundos da
sociedade. És o primeiro a entrar para vires limpar e o primeiro a sair
para lá não estares na hora de acender a luz. E isto é uma realidade.
O
meu avô foi contratado em São Tomé, estamos a falar de há 40 a 60 anos,
foi a instauração de uma psicologia de fome que criou os mecanismos para
obrigar um povo a emigrar em massa, para manter um mecanismo
esclavagista a funcionar. Se continuarmos a passar sem olhar para a
nossa história, teremos pessoas que não sabem para onde vão, porque
ignoram de onde vieram. Se insistirmos em apagar, esconder e não
discutir abertamente aquilo que nos diferencia, não entenderemos porque
estamos aqui. Dificilmente construiremos alguma coisa em conjunto com os
outros sem sarar as feridas.
Resta saber se a questão das feridas e a sua repetição não
pode ser usada para dividir a possibilidade de haver um rio de gente
diferente que possa construir qualquer coisa de novo...
Pelo contrário, sarar as feridas serve para unir esse rio. Essa
discussão entre os movimentos identitários e a esquerda universalista
existe nos Estados Unidos há 50 anos... Há uma cena muito interessante
de um autor, Robin Kelley, em que ele mostra que na construção do
iluminismo e dos ditos valores universais nós, os negros, não estávamos
lá. O socialismo tem de entender que muitas vezes foi construído de si
para si e por vezes sobre a história de outros povos.
Se me perguntares
se sou anticapitalista ou socialista, eu dir--te-ei que tenho outra
opção, sou “cabralista” [seguidor de Amílcar Cabral, um dos fundadores
do PAIGC], um tipo que pensou a política à luz dos seus problemas. E a
raça, ainda que seja uma construção social, é uma realidade e faz parte
da política. Desafio o jornalista: qual é a percentagem de desemprego na
comunidade negra em Portugal? Será que são os 15% ou são mais? A raça
tem aqui uma importância determinante.
De alguma forma faz a afirmação dessa situação no segundo tema do disco [N.I.G.G.A.S.].
Esta música tem que ver com a perspectiva que nós negros temos de
nós, que é uma perspectiva errada, construída ao longo de gerações. Os
novos podem ter a ideia de “o fulano é um granda gangsta”, mas os
verdadeiros grandes gangstas foram o Amílcar Cabral e o Malcolm X, os
gajos que lutaram contra o sistema. A perspectiva nos bairros, quando os
jovens pensam que são gangstas e estão a ir contra o sistema, não
entende que o crime e o trabalho são duas faces do mesmo sistema. Os
grandes criminosos em Portugal não são negros, no entanto continuas as
ver nas ruas, nas esquinas, que são virtualmente substituídos por outro
qualquer quando são presos, como se fossem trabalhadores temporários, e
que no fim do dia, depois de arriscarem a vida, fazem literalmente 20
euros para irem comer.
Não há uma certa mitificação na sua música daquilo que se passa nos bairros?
O rap sempre mitificou. Na minha perspectiva, ninguém está a
conseguir mobilizar nem os bairros, nem os 10 milhões de pessoas. Há um
problema de mobilização na comunidade negra muito grande. Mas a música
não tem um papel messiânico. Aqui estão as minhas opiniões, as minhas
vivências e as minhas frustrações, quando tenho uma banda que não
consegue sequer ir da Margem Sul para Lisboa porque não tem dinheiro.
Quando fala de “resistência e guerrilha” e centenas de “tropas”, não se fala de uma força que não há?
O disco não é propositivo, não tem a pretensão de dizer vamos fazer
isto ou aquilo. A música não é sociologia. Nem todas as coisas têm de
ter respostas racionais. A arte não tem a obrigação de fazer propostas
políticas. Há um livro muito importante sobre a luta negra, “Freedom
Dreams”, do tal Robin Kelley, em que ele defende que a luta dos negros é
construída a partir do lugar em que quer chegar e não de onde parte. Do
lugar em que está toda a gente sabe. O Sun Ra fala da “spaceship”, de
nos levar a outro lugar que não é este. Agora eu pergunto: a intuição
está patente ou não?
A espiritualidade está patente ou não? Não acredito
que se tenha de fazer música racionalista, não acredito que tenhamos de
estar sempre a falar de onde estamos, que não possamos ter na música um
discurso sobre onde queremos chegar. A esquerda fala disso quando pensa
na utopia. Não se cantaram as guerrilhas antes de elas se fazerem? Em
Portugal não se cantou a revolução antes de ela se fazer? Não se cantou
em África a independência antes de ela se fazer? Porque é que não se
pode cantar em Portugal uma luta que está a ser feita ou antes de ela se
fazer ou para a apregoar?
Porque é que me fazes essa pergunta? Não
posso cantá-la? A arte não teve o papel de fazer chegar lá, a arte tem o
papel de cantar o insustentável, aquilo que já não estava escrito nos
cadernos da escola, ou nos jornais. Esse é o nosso papel. Depois posso
ter a opção de dizer “não quero só fazer letras de músicas, quero fazer
este trabalho também”, e então estender-me como ser humano, ou como ser
político e fazer essa luta.
Numa outra música há uma crítica à forma como os jovens do subúrbio vivem as suas relações amorosas.
Não é uma crítica. Tens de viver a tua luta na base do amor: as
pessoas que tu amas e não as pessoas que tu odeias. É inútil continuar a
fazer esse discurso do ódio. E isso é o que o mundo nos tem mostrado.
“Eu odeio aquele e vou à guerra e vou mandar os meus tanques e os meus
mísseis” ou “aquela etnia é fodida, vou mandar aqui os meus skinheads” e
não sei quê... Não, temos de nos construir com base no amor que temos
como seres humanos, pelos filhos, pelos companheiros e companheiras e
pelo mundo.
Isso é que move as pessoas. Se for ouvir a motivação do
subcomandante Marcos [porta-voz do Exército Zapatista de Libertação
Nacional], é uma motivação de ódio ou uma motivação de amor, pela sua
história, pelo seu povo e pelo mundo, pela humanidade? Enquanto não
souberes amar o teu próximo, quem mais tu sabes amar? Porque estamos num
mundo em que a linguagem do ódio e da violência é a linguagem que
vende. Fui pai, sei o que é que a afectividade faz a uma pessoa.
Sei que
o importante é criarmos os nossos filhos com afecto, em vez de os
entregarmos só às creches e deixarmos que eles sejam criados por
estranhos, à luz das teorias especiais e das pedagogias e essas merdas
todas. O amor é uma linguagem universal. Por exemplo, nessa música
falava directamente com o meu irmão sobre o meu sobrinho. É uma vivência
pessoal. Às vezes posso estar a falar de mim, posso estar a fazer uma
auto-reflexão, uma crítica a mim e não uma crítica ao outro. Há um lado
extremamente autocrítico.
Diz que tem encontros com a PSP, com a PJ e com o SIS. Parte
da comunidade sente de alguma forma perseguição por causa da sua
politização, nos bairros?
Nos bairros há perseguição. Há uma forma de policiamento diferente,
ponto final. Nem precisas de ser politizado: são dez da noite, estão
seis gajos na rua, vais ser encostado à parede. Depois, se fizeste merda
ou não, logo se vê. Logo se arranja, até. Se precisarem de te levar,
arranjam qualquer coisa, nem que seja resistência à autoridade. Isto é
uma realidade e podes perguntar às pessoas que vivem nos bairros.
E
também não é uma coisa só de pretos. Vai perguntar a brutalidade que se
tem feito sentir no Porto, e não estou a falar da Fontinha... Há gente
que acha que a repressão policial é nas manifestações, mas é ver a
violência nos bairros do Porto. Agora, para o pessoal politizado,
faz-_-se sentir sim senhor. Tanto há pessoas da plataforma como de
outros grupos que a têm sentido, não só das escutas que levam, pelas
pessoas que já foram agredidas por terem actividade política. As pessoas
dos bairros já são perseguidas e se tiverem um discurso político são
mais.
Aconteceu-lhe alguma coisa?
Tenho casos de ameaças, concretas, até já brinco com isso.
Ameaças de quem? Da polícia?
Carros a passar com paisanos a ameaçar, ir na rua na boa e os
polícias dizerem “olha, é o Chullage”... e tenho casos de ser parado
numa operação stop e dizerem “olha, a tua música é boa! Boa viagem!”
Generalizar as coisas é foda. Também podes encontrar aquele polícia que
te vai dizer “não, não concordo”, mas o problema é que tu não podes
falar da opinião do polícia, tens de falar da prática geral de uma
instituição.
Foi preciso este tempo para fazer um novo álbum? Foram oito anos, não é?
Não, não. Precisei foi desse tempo porque tinha de trabalhar e comer
e dar comida aos meus filhos. Infelizmente esta merda não me dá
dinheiro. Felizmente, posso dizer o que quero aqui porque não dependo
dessa cena, vou buscar dinheiro noutro lado. Só que infelizmente agora
nem isso é possível. Não precisei de oito anos, mas essas músicas até
são infelizmente actuais, algumas feitas há anos. Escuta-se as “Barrigas
Vazias” e parece feita para a crise de agora. Mas o processo está a
acontecer há 30 anos: é o neoliberalismo, isto é o consenso de
Washington. As únicas músicas escritas na altura da mistura deste álbum
são o “Mediocridade” e o “360”.