domingo, 27 de maio de 2012

Chullage - A arte tem o papel de cantar o insustentável




dia 21

Chullage levou oito anos a lançar o seu novo CD. Não porque não tivesse músicas feita para vários, mas porque precisava de dar de comer aos filhos. Nos bairros a vida não está fácil e o rap canta o amor e a raiva daqueles que lutam e sobrevivem.

Por Nuno Ramos de Almeida, para o site iOnLine

Se o convidassem para os “Morangos com Açúcar”, para fazer um rap, acha que se enquadrava?

Não. A cena é em que contexto a tua música vai aparecer. Os “Morangos com Açúcar” estão sempre a sobrevoar. Fazem um episódio da droga e estão a sobrevoar. Houve um episódio sobre os artistas que era muito romanceado. Se agarrassem numa música minha e fizessem uma coisa qualquer ia ficar fora de contexto.

Não acredito que colocassem o meu tema “Barrigas Vazias”. Normalmente, as músicas que colocam são para ilustrar aquela espécie de psicologia de microondas que vendem aos miúdos. Decidem falar da droga e é sempre numa perspectiva como se estivessem num gabinete longe da realidade a falar para a classe média-alta sobre os problemas. E nesse sentido a minha música só poderia estar fora de contexto.



Não acha que apareceu fora de contexto numa campanha sobre o desperdício alimentar em que a canção dizia “o que eu não aproveito ao almoço e ao jantar/a ti deve dar jeito, temos que nos encontrar”, uma espécie de dar os restos aos pobrezinhos...

Não participei com esse intuito. Fui contactado por uma agência que me pediu para participar numa campanha contra o desperdício alimentar e eu concordo que não deve haver desperdício alimentar. Até por uma questão pessoal, estou desempregado há seis meses e se alguém me dá uns iogurtes, se eu tiver fome vou comer. A música transformou-se em algo, porque realmente a letra passa o contrário do que quer passar. Acredito que não foi escrita com esse propósito, de serem “os restinhos da minha mesa para ti”. Se fosse assim, não participaria.

Mas é verdade que, quem não conhece a intenção dos autores, ao ouvir a letra pode ter a perspectiva de uma cena paternalista, até ofensiva para a pobreza das pessoas. Agora acho que há imenso desperdício. A pergunta que faço é: na Inglaterra, quando os supermercados deitam a comida fora, põem lixívia e amoníaco para impedir que as pessoas possam comer, gente que efectivamente tem fome, aquela esquerda histérica que saltou para cima da campanha está disposta a pôr amoníaco no problema das pessoas e continuar a mandar soluções para amanhã para os problemas de hoje?

Não há sempre uma tensão entre o assistencialismo e resolver o problema das pessoas? Conseguimos sempre justificar o “fazer caridade” hoje, mas isso resolve o problema?

Sou contra o assistencialismo. Não é a dar sopinha aos pobres que se vai resolver o problema da pobreza. As campanhas contra o desperdício também não o vão fazer. Isto é uma merda, nem sequer chega a ser paliativo. Isso mantém o problema. Acho que a letra está mal feita à partida. Mas muita da gente que fala come bem para caraças. Naquela altura, em que aquelas pessoas falaram disso, houve dias em que não comi. Estou desempregado há seis meses e nenhuma dessas pessoas tem dado resposta ao meu desemprego e ao de milhões de pessoas. Algumas manifestações parecem um carnaval que não resolve nada. Sou um tipo de esquerda, não defendo o assistencialismo, mas é preciso inventar novas lutas e formas de resolver os problemas.

A primeira música do seu álbum faz uma certa crítica a um rap que ficou com a estética e lhe tirou o sentido. Uma espécie de contraponto entre o rap de rua e o comercial...

Não é o comercial. Sempre que fazes um CD estás a fazer algo de comercial. É um rap higienizado e branqueado... E branqueado não se refere à cor da pele, a expressão é usada para falar do esquecimento dos seus valores e da sua história. Tens vários rappers brancos, asiáticos, da América Latina, a fazer música radical que respeita os valores do rap. Falo de uma música que é feita para se adaptar aos consumos de uma classe média alta branca, que é branca porque estamos em Portugal e quem tem mais poder de consumo são esses brancos. Se estivéssemos em Angola ou Cabo Verde seriam negros, então vão fazer a música à medida desse mercado, devidamente higienizada.

Uma das reivindicações do seu disco é um rap que continua a falar da “cor da epiderme”. Não acha que em Portugal vivemos mais um problema de desigualdades que de afirmação?

Tudo é um problema de desigualdade. Mas essa mesma desigualdade tem especificidades. Não percebo por que razão toda a gente aceita as lutas de género como sendo boas, mas quando se chega à questão da raça isso já não é aceitável. Dizem: “Lá estão vocês com a mania da perseguição.” Só quero fazer uma pergunta: a raça é um motivo de exclusão ou não? Há um bolo grande que se chama igualdade, mas tem de haver várias frentes na luta pela igualdade e essas frentes são de género, pois é, de classe, pois é, mas também de raça. E quando nós estivermos a fazer essa luta da raça estamos a fazer uma coisa importante.

Mas os músicos não são bons e maus independentemente da cor da pele?

Essa discussão da importância do contributo cultural é natural que outros não a sintam. Não ouviram durante gerações dizerem-lhes na escola e nos livros que a sua história era inferior. Que era uma história de escravatura, de migrações, em que estás sempre na porta dos fundos da sociedade. És o primeiro a entrar para vires limpar e o primeiro a sair para lá não estares na hora de acender a luz. E isto é uma realidade.

O meu avô foi contratado em São Tomé, estamos a falar de há 40 a 60 anos, foi a instauração de uma psicologia de fome que criou os mecanismos para obrigar um povo a emigrar em massa, para manter um mecanismo esclavagista a funcionar. Se continuarmos a passar sem olhar para a nossa história, teremos pessoas que não sabem para onde vão, porque ignoram de onde vieram. Se insistirmos em apagar, esconder e não discutir abertamente aquilo que nos diferencia, não entenderemos porque estamos aqui. Dificilmente construiremos alguma coisa em conjunto com os outros sem sarar as feridas.

Resta saber se a questão das feridas e a sua repetição não pode ser usada para dividir a possibilidade de haver um rio de gente diferente que possa construir qualquer coisa de novo...

Pelo contrário, sarar as feridas serve para unir esse rio. Essa discussão entre os movimentos identitários e a esquerda universalista existe nos Estados Unidos há 50 anos... Há uma cena muito interessante de um autor, Robin Kelley, em que ele mostra que na construção do iluminismo e dos ditos valores universais nós, os negros, não estávamos lá.  O socialismo tem de entender que muitas vezes foi construído de si para si e por vezes sobre a história de outros povos.

Se me perguntares se sou anticapitalista ou socialista, eu dir--te-ei que tenho outra opção, sou “cabralista” [seguidor de Amílcar Cabral, um dos fundadores do PAIGC], um tipo que pensou a política à luz dos seus problemas. E a raça, ainda que seja uma construção social, é uma realidade e faz parte da política. Desafio o jornalista: qual é a percentagem de desemprego na comunidade negra em Portugal? Será que são os 15% ou são mais? A raça tem aqui uma importância determinante.

De alguma forma faz a afirmação dessa situação no segundo tema do disco [N.I.G.G.A.S.]. 

Esta música tem que ver com a perspectiva que nós negros temos de nós, que é uma perspectiva errada, construída ao longo de gerações. Os novos podem ter a ideia de “o fulano é um granda gangsta”, mas os verdadeiros grandes gangstas foram o Amílcar Cabral e o Malcolm X, os gajos que lutaram contra o sistema. A perspectiva nos bairros, quando os jovens pensam que são gangstas e estão a ir contra o sistema, não entende que o crime e o trabalho são duas faces do mesmo sistema. Os grandes criminosos em Portugal não são negros, no entanto continuas as ver nas ruas, nas esquinas, que são virtualmente substituídos por outro qualquer quando são presos, como se fossem trabalhadores temporários, e que no fim do dia, depois de arriscarem a vida, fazem literalmente 20 euros para irem comer.

Não há uma certa mitificação na sua música daquilo que se passa nos bairros? 

O rap sempre mitificou. Na minha perspectiva, ninguém está a conseguir mobilizar nem os bairros, nem os 10 milhões de pessoas. Há um problema de mobilização na comunidade negra muito grande. Mas a música não tem um papel messiânico. Aqui estão as minhas opiniões, as minhas vivências e as minhas frustrações, quando tenho uma banda que não consegue sequer ir da Margem Sul para Lisboa porque não tem dinheiro.

Quando fala de “resistência e guerrilha” e centenas de “tropas”, não se fala de uma força que não há? 

O disco não é propositivo, não tem a pretensão de dizer vamos fazer isto ou aquilo. A música não é sociologia. Nem todas as coisas têm de ter respostas racionais. A arte não tem a obrigação de fazer propostas políticas. Há um livro muito importante sobre a luta negra, “Freedom Dreams”, do tal Robin Kelley, em que ele defende que a luta dos negros é construída a partir do lugar em que quer chegar e não de onde parte. Do lugar em que está toda a gente sabe. O Sun Ra fala da “spaceship”, de nos levar a outro lugar que não é este. Agora eu pergunto: a intuição está patente ou não?

A espiritualidade está patente ou não? Não acredito que se tenha de fazer música racionalista, não acredito que tenhamos de estar sempre a falar de onde estamos, que não possamos ter na música um discurso sobre onde queremos chegar. A esquerda fala disso quando pensa na utopia. Não se cantaram as guerrilhas antes de elas se fazerem? Em Portugal não se cantou a revolução antes de ela se fazer? Não se cantou em África a independência antes de ela se fazer? Porque é que não se pode cantar em Portugal uma luta que está a ser feita ou antes de ela se fazer ou para a apregoar?

Porque é que me fazes essa pergunta? Não posso cantá-la? A arte não teve o papel de fazer chegar lá, a arte tem o papel de cantar o insustentável, aquilo que já não estava escrito nos cadernos da escola, ou nos jornais. Esse é o nosso papel. Depois posso ter a opção de dizer “não quero só fazer letras de músicas, quero fazer este trabalho também”, e então estender-me como ser humano, ou como ser político e fazer essa luta.

Numa outra música há uma crítica à forma como os jovens do subúrbio vivem as suas relações amorosas. 

Não é uma crítica. Tens de viver a tua luta na base do amor: as pessoas que tu amas e não as pessoas que tu odeias. É inútil continuar a fazer esse discurso do ódio. E isso é o que o mundo nos tem mostrado. “Eu odeio aquele e vou à guerra e vou mandar os meus tanques e os meus mísseis” ou “aquela etnia é fodida, vou mandar aqui os meus skinheads” e não sei quê... Não, temos de nos construir com base no amor que temos como seres humanos, pelos filhos, pelos companheiros e companheiras e pelo mundo.

Isso é que move as pessoas. Se for ouvir a motivação do subcomandante Marcos [porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional], é uma motivação de ódio ou uma motivação de amor, pela sua história, pelo seu povo e pelo mundo, pela humanidade? Enquanto não souberes amar o teu próximo, quem mais tu sabes amar? Porque estamos num mundo em que a linguagem do ódio e da violência é a linguagem que vende. Fui pai, sei o que é que a afectividade faz a uma pessoa.

Sei que o importante é criarmos os nossos filhos com afecto, em vez de os entregarmos só às creches e deixarmos que eles sejam criados por estranhos, à luz das teorias especiais e das pedagogias e essas merdas todas. O amor é uma linguagem universal. Por exemplo, nessa música falava directamente com o meu irmão sobre o meu sobrinho. É uma vivência pessoal. Às vezes posso estar a falar de mim, posso estar a fazer uma auto-reflexão, uma crítica a mim e não uma crítica ao outro. Há um lado extremamente autocrítico.

Diz que tem encontros com a PSP, com a PJ e com o SIS. Parte da comunidade sente de alguma forma perseguição por causa da sua politização, nos bairros? 

Nos bairros há perseguição. Há uma forma de policiamento diferente, ponto final. Nem precisas de ser politizado: são dez da noite, estão seis gajos na rua, vais ser encostado à parede. Depois, se fizeste merda ou não, logo se vê. Logo se arranja, até. Se precisarem de te levar, arranjam qualquer coisa, nem que seja resistência à autoridade. Isto é uma realidade e podes perguntar às pessoas que vivem nos bairros.

E também não é uma coisa só de pretos. Vai perguntar a brutalidade que se tem feito sentir no Porto, e não estou a falar da Fontinha... Há gente que acha que a repressão policial é nas manifestações, mas é ver a violência nos bairros do Porto. Agora, para o pessoal politizado, faz-_-se sentir sim senhor. Tanto há pessoas da plataforma como de outros grupos que a têm sentido, não só das escutas que levam, pelas pessoas que já foram agredidas por terem actividade política. As pessoas dos bairros já são perseguidas e se tiverem um discurso político são mais.

Aconteceu-lhe alguma coisa? 

Tenho casos de ameaças, concretas, até já brinco com isso.
Ameaças de quem? Da polícia? 

Carros a passar com paisanos a ameaçar, ir na rua na boa e os polícias dizerem “olha, é o Chullage”... e tenho casos de ser parado numa operação stop e dizerem “olha, a tua música é boa! Boa viagem!” Generalizar as coisas é foda. Também podes encontrar aquele polícia que te vai dizer “não, não concordo”, mas o problema é que tu não podes falar da opinião do polícia, tens de falar da prática geral de uma instituição.

Foi preciso este tempo para fazer um novo álbum? Foram oito anos, não é? 

Não, não. Precisei foi desse tempo porque tinha de trabalhar e comer e dar comida aos meus filhos. Infelizmente esta merda não me dá dinheiro. Felizmente, posso dizer o que quero aqui porque não dependo dessa cena, vou buscar dinheiro noutro lado. Só que infelizmente agora nem isso é possível. Não precisei de oito anos, mas essas músicas até são infelizmente actuais, algumas feitas há anos. Escuta-se as “Barrigas Vazias” e parece feita para a crise de agora. Mas o processo está a acontecer há 30 anos: é o neoliberalismo, isto é o consenso de Washington. As únicas músicas escritas na altura da mistura deste álbum são o “Mediocridade” e o “360”.

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