Emicida conversa com a reportagem do site da Rolling Stone Brasil
Foto: Janaina Castelo Branco/Divulgação
"Ali" é um "apartamento bacana" a algumas centenas de metros, com novo móvel ("tô marrento, mandei fazer, agora faço sob encomenda", diz sem a menor marra) para abrigar os cerca de 800 vinis da coleção. Oliveira vira o Homem Elástico ao alongar ainda mais o braço para informar que "antes morava láááá no Cachoeira, último bairro da Zona Norte".
Os 24 anos de Oliveira foram passados quase que integralmente na Zona Norte paulistana, láááá onde corredor polonês e corredor cultural podem virar sinônimos - isto é, se você esquecer de deixar o preconceito na chapelaria. Sem esse dado biográfico o filho de Dona Jacira, terceiro de cinco irmãos (duas meninas e dois meninos; uma irmã morreu), dificilmente seria o que é hoje. Um exterminador profissional. Alguém capaz de olhar bem nos olhos dos oponentes até os eliminar, um a um, com armas dignas de um arsenal espartano do rap: música e imaginação.
Oliveira é Emicida, ou E.M.I.C.I.D.A., sigla que inventou sobre o apelido dado pelos amigos, transformado em Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte. É claro que ninguém entra em uma batalha de MCs para perder. Mas esse tipo de confronto - basicamente, dois caras improvisam um rap, e o público decide quem "metralhou" quem - tem princípio bem diferente ao daqueles duelos que hoje cheiram a naftalina, quando dois marmanjos do século 19 resolviam suas diferenças na espada ou pistola. Emicida explica: "É uma atmosfera extremamente pesada, tensa pra caralho. Mas é uma parada para todo mundo se divertir. Faço pela brincadeira. Faço de coração".
Acontece que, ultimamente, ele precisa sair com cada vez mais frequência da região que lhe deu a manha para ganhar batalhas "na proporção de 10 [vitórias] para uma [derrota]". Emicida está virando grife. Nas boates da Zona Sul, manos e minas dividem fila com um tipo inexistente em 99% dos shows na periferia: o indie e sua indefectível "indumentária do rap", uma espécie de Sarah-Jessica-Parker-fase-M.I.A. para elas, Brandon-Flowers-encontra-Mano-Brown no caso deles. De quebradas "roots" a casas alternativas, o rapper faz shows (calcula de 12 a 16 por mês) lotados por todo o estado de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e outros cantos do país.
Emicida não põe muita fé neste papo de "trair o movimento". Pergunto o que ele responderia se Boninho lhe telefonasse pedindo uma música para a trilha do próximo Big Brother. "Na real, acho legal falar para cada vez mais pessoas", ele fala, e dá uma pausa dramática antes de completar o raciocínio. "Desde que elas entendam a música."
Continua: "É do caralho ter várias ideias para combater o racismo, o preconceito. O legal é isso, colocar pessoas diferentonas cantando no mesmo lugar". Mas isso faz dele o quê? Rap? Indie? Emicida sorri e, como se tivesse um anzol fisgado no canto da boca, abre sorriso largo e um pouco irônico, que lhe deixa com feições de um garoto que comprou sua primeira revista masculina e agora mostra o troféu para os coleguinhas de classe. "Sou é hype!"
O problema da crescente popularidade não é tanto o medo de virar réu no julgamento que atinge nove em dez artistas que ecoam além da periferia (trair o movimento, se vender ao sistema e outros biscoitos da sorte chineses sabor anti-elite). O que pega para Emicida é ter começado a "sair mais de táxi pra dar conta de tudo". Porque se tem uma coisa que Leandro Roque de Oliveira odeia é taxista. Quando é inevitável, só chama os que já conhece, "os gente boa". Detesta os olhares enviesados, "dos caras que são piores que polícia e sempre querem saber para onde você está indo, já te olham errado". Não é "noia": já processou, por exemplo, um taxista que o chamou de macaco.
Ele olha para a repórter e ri. "Se eu fosse lourinha de olhos azuis que nem você, só por um segundo, qualquer dia metia o cano num taxista desses", diz. O tom não é inflamado. Emicida prefere metralhar sem dedo no gatilho, numa viagem sonora com bases feitas por DJ Nyack, Slim Rimografia e Projeto Nave, entre outros "parceiros de sempre".
E, nesse sentido, Emicida é uma máquina de guerra. Costumava compor de duas a três músicas por dia. A produção baixou por causa da agenda cheia, mas ele compensa "parando na madrugada para fechar as ideias". Tanto material não escoa ralo abaixo. Ele já soltou uma mixtape nas ruas, Para Quem Já Mordeu Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe. Pretende lançar uma nova até fevereiro e, quem sabe, outra no meio do ano. O preço deve continuar o mesmo: R$ 2.
"Tô fodendo com a economia", vangloria-se Emicida, entregando em seguida as coordenadas da guerrilha cultural involuntária. "Lá em casa tá cheio de nota de R$ 2, moeda de R$ 1, de R$ 0,50. A economia tá lá parando comigo."
Para batizar essa primeira mixtape - de onde vêm músicas como "Só Isso" e "Triunfo", algumas das que transitam bem fora do circuito rap - Emicida recuperou uma história dos tempos em que era o Leandro de seis anos. O pai tinha acabado de morrer, e a mãe foi trabalhar como empregada doméstica. "Um perreio de grana fudido", conta. "Minha irmã dividiu dois pães entre os quatro irmãos. E pobre, independentemente da miséria, sempre tem cachorro. É lei. Eu tinha uma cadela, a Afrodite, que abocanhou o meu. Fiquei maluco! Fui lá e mordi o bicho de volta."
Para quem já mordeu cachorro por comida, Emicida chegou longe. E não passou despercebido no meio do caminho. Em 2009, recebeu "umas quatro ligações importantes", ele calcula. A tecla SAP é: grandes gravadoras. Por ora, não quis saber delas. "Mas cuidado como você coloca aí, ou vão chegar e, 'olha lá, ligaram pro Emicida e agora o cara tá esnobando", ele pede relativização. "Esse pessoal às vezes é meio tenso nas viadagens."
É o gancho para entrarmos de novo no velho embate raízes vs. mainstream. "O problema é que o cara quer fazer um rap que não seria viável nem para mim, nem para ele, sabe? Meu lance é música, o dele é dinheiro", explica por que ainda não lançou um álbum, ao menos no sentido tradicional da coisa. "Enquanto não chegar alguém monstrão, que compreenda a proposta... Não vai rolar."
Quatro mandamentos e um freestyle
No antebraço esquerdo, Emicida tem uma tatuagem - um círculo com raio de mais ou menos 2 cm - com quatro mandamentos do código do samurai, que traduz a pedido da repórter:
1) "Nunca ser superado no meio do caminho"
2) "Ser um bom filho para seus pais"
3) "Ser de utilidade para a causa"
4) "Ter compaixão e usá-la para o bem da humanidade"
Emicida é um cara que valoriza raízes. "É importante dar moral para a miséria. Quando não se tem nada, é ela que está lá ao seu lado", filosofa.
Nessa mesma toada, sabe que o rap não nasceu por geração espontânea. "Gosto do jazz por causa do improviso. Aquela jam de batera, piano, baixo - eu piro", diz. "Isso me influenciou pra caralho na rima. Freestyle é o mais próximo que a cultura popular tem do jazz, que infelizmente virou uma parada de elite."
Grande poder traz grandes responsabilidades. Por um lado, Emicida sabe que está na reta da rapaziada. "Sinto mais perseguição, sim", diz, e pela primeira vez na tarde sua expressão é mais ambígua - não dá para sacar de cara se incomoda ou não ao caçador tanta gente passando a vê-lo como caça. "Tem música falando mal de mim. Mas o engraçado é que só as batalhas que perco é que não vão parar nos blogues."
Emicida sorri e deixa o corpo relaxar, deixando os braços desabar como dois fios de macarrão al dente, num ato inconsciente que transmite a mensagem de "é a vida, fazer o quê". "Sabe, o lance não é batalhar com os grandes nomes, é fazer com que queiram batalhar com você."
E então repórter e rapper saem andando pela vizinhança do Tucurivi, o primeiro mandamento dos samurais solto no ar: "Nunca ser superado no meio do caminho".
By Rolling Stone
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