quarta-feira, 17 de março de 2010

A Primeira Vez Que Ouvimos Snake Foi no Tema PSP





''O choro, como uma ladainha, chega da pequena sala do fundo. Um vulto feminino e esguio ergue-se na escuridão, passa as mãos sobre o ecrã, acaricia a imagem de uma cara a sorrir. A mãe de Snake (alcunha de bairro de Nuno Rodrigues) entrega-se ao desespero enquanto na sala, intencionalmente na penumbra, revê a reportagem da morte do seu filho mais novo. "O meu filho... o meu filho..." Nada mais se ouve, como se estivesse sozinha ou rodeada de gente em silêncio como, na realidade, está.

O filho prometera-lhe que um dia "ia fazer história na música". Fez história, mas de maneira trágica. Foi morto pela polícia, na madrugada de segunda-feira, quando voltava sozinho da discoteca In Seven Seas, nas Docas de Lisboa. Ninguém presenciou o que aconteceu a não ser a polícia. E ninguém nesta casa da zona N1 de Chelas acredita na versão policial de que Snake ignorou numa operação stop e fugiu.

Abrir portas em discotecas

Ainda há poucos dias, Maria Canaças pedira ao filho para deixar essa vida de discotecas. Ele respondera-lhe que era nestes sítios que se abriam portas, recorda a irmã Nuria Paula, de 40 anos. O irmão era conhecido dos porteiros do Kremlin, da Kapital, do Queen"s e de muitas outras onde ocupava as suas noites. Gostavam dele, conta Paulo Soares, um dos amigos que partilha a dor desta família originária de Angola.

"Sou branco e para mim ele era como um irmão", acrescenta Adriano Silva, outro amigo. Snake gostava de consensos e muitas vezes "era quem tinha mais juízo", quem tentava acalmar discussões, acrescenta Fábio Gomes, 22 anos, que acaba de chegar do Algarve para uma última despedida. "Não acredito em nada disto de que ele fugiu", diz. O carro com que andava não dava para muito. Era um Lancia Y10 que frequentemente perdia força e ia abaixo.



Com 30 anos, Nuno Rodrigues era o mais jovem de quatro irmãos. "Era o nosso mais novo." E era pai de família, apesar de viver a maior parte do tempo em casa da mãe. "A filha era a adoração dele", diz o irmão Jorge. A menina de dois anos passa de colo em colo, passeia pela casa, sem perceber o choro das mulheres. Uma fotografia dela está numa moldura na sala, outra na carteira de Snake, ao lado dos documentos "todos em ordem, todos em dia".

A mãe da menina, companheira de Snake, encosta por momentos a porta do quarto dele, e ali permanece sozinha. Nas paredes deste mundo multiplicam-se posters dos ídolos de Snake, Tupac Shakur (morto num tiroteio em Las Vegas em 1996) e Snoop Doggy Dogg, mas também Bob Marley. Dezenas de sapatos de ténis ocupam as prateleiras de duas estantes e bonés de Nova Iorque ou dos Los Angeles Lakers estão pendurados, ao lado de dois casacos de pele.

"Pela cor da pele, as tranças nos cabelos compridos e a roupa que vestia, era como um símbolo de todos nós", continua o irmão Jorge. Era diferente e, por isso, muitas vezes mandado parar pela polícia, acrescenta. A última dessas vezes foi na passada quinta-feira, de dia, no bairro onde morava. Se não tivesse os documentos em ordem, talvez não tivesse morrido. Jorge aconselhara-o a mudar de roupa para não atrair desconfianças infundadas, recorda. "Na sociedade em que vivemos, não irás a lado nenhum vestido assim", dizia-lhe. "Sou um artista, sou como sou. Para gostarem de mim, têm de gostar de mim como sou", respondia-lhe Nuno.

Quatro anos na cadeia

No resto da casa, deixa-se que a luz entre e ilumine as divisões exíguas e arrumadas. Familiares e amigos, vizinhos de Snake, demoram-se em conversas de revolta. E de perda. Exorciza-se a ira, contraria-se a versão da polícia, nem se acredita que tenha havido fuga. Snake era pacífico e sociável, sabia distinguir o que estava certo do errado, consideram os amigos. Aprendera muito com os quatro anos de prisão que cumprira por tráfico de droga, na cadeia do Linhó.


Desde que saiu, com 22 anos, mudou de vida, para melhor. Era através da música que exprimia a revolta contida face à discriminação social e policial. Não através da violência, diz a irmã. E foi de dentro da cadeia que participou pela primeira vez numa música do rapper Sam The Kid, no álbum Sobre(tudo), de 2002.

"Quando esteve preso, passou por várias fases. A fase de revolta, a vontade de se redimir. Participou na música [desse álbum] chamada "PSP", que, ironicamente, foi quem acabou por matá-lo", diz Sam The Kid. "Quando saiu, incentivei-o a escrever, queria que participasse noutro tema. As primeiras rimas dele foram escritas para o Negociantes", conta o rapper. "[No início] disse-lhe que trouxesse o trabalho e depois eu ajudava-o com as rimas.

P
ara ele era muito importante. Escrevia sobre as oportunidades que a vida oferece", continua o músico com quem Snake actuava ao vivo desde 2006. "A cada concerto ganhava mais à-vontade. Tentava sempre dar o seu melhor, era muito positivo. "Nem os anos na prisão nem nada "justifica um tiro", diz a irmã Nuria. "Só queremos justiça, alguém que seja responsabilizado. Sabemos que isso não nos traz de volta o nosso irmão, mas talvez sirva de exemplo." com Mário Lopes


www.jornal.publico.pt

Filled Under:

0 comentários:

Postar um comentário